A realidade mais bonita

quarta-feira, fevereiro 01, 2017



Tem essa história que eu adoro sobre a construção de Brasília. Lúcio Costa, urbanista responsável pelo projeto do Plano Piloto, veio à cidade algumas vezes depois da sua construção. Numa dessas visitas, quase 25 anos depois do inauguração da capital, ele deu uma entrevista que falava sobre a cidade que inventou, e uma das suas grandes surpresas tinha sido a Rodoviária do Plano Piloto. O local foi pensado para ser um centro rodoviário e cultural sofisticado, numa mistura "em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Suare e Champs Elysées", para usar as palavras do próprio urbanista no projeto vencedor do concurso para o Plano Piloto, em 1957 (se você conhece Brasília e nunca leu, recomendo. É lindo ver a Brasília sonhada e a real!), com cinemas, teatros e comércios de rua sofisticados.

Quem conhece a Rodoviária hoje sabe que ela é BEM diferente disso: uma típica estação de ônibus do Brasil - muvuca, confusão, comércio popular, sujeira e aquela mistura inacreditável e genuinamente brasileira. Ao ver o que virou seu projeto, Lucio Costa reconheceu que errou, "que o sonho foi menor que a realidade". Segundo ele, a Rodoviária é a "bastilha" dos candangos, que tomaram para si um espaço que não fora originalmente concebido para eles. Achei lindo que ele tenha reconhecido seu erro e tenha conseguido capturar, de forma tão perspicaz, o espírito da Rodoviária e de Brasília, que não é "a flor de estufa que poderia ser".

Feito esse preâmbulo, compartilho texto e fotos que fiz sobre a Rodoviária de Brasília.




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A realidade mais bonita




Foi ali que começou a cidade. Assentada sobre o gesto primário da cruz, a Rodoviária materializou o início de tudo. Do seu vértice, partiram os eixos que moldaram Brasília. Das suas paragens, é possível divisar todas as cenas que construíram o imaginário simbólico dessa cidade - o Congresso, a fila simétrica dos ministérios, a Torre de TV, a bola mágica do Museu Nacional.

Como naqueles casos em que a forma serve à função, a Rodoviária virou espaço de encontros e desencontros, de contrastes e diferenças. O encontro do Norte com o Sul, mergulho que aproxima e afasta. A convergência da escala monumental, icônica, ampla, simétrica e cheia de vazios, com a escala humana das superquadras, onde tem vizinho, café, flor de plástico e cortina.

Território de pedestres e carros, é, ao mesmo tempo, plataforma que escoa veículos e superfície que conecta pessoas, organizando o vai-e-vem da cidade.

A Rodoviária é o espaço da multidão e da solidão. Nas horas mais cheias do dia, o sol vermelho do Planalto Central espalha seus últimos raios, abrindo buracos dourados nas vigas feitas de concreto e espera. As pessoas aguardam suas conduções empilhadas em filas, desconectadas entre si, flutuando em suas próprias galáxias, os olhares compridos de cansaço e desânimo. O dia de trabalho finda e a Rodoviária é aquele nó entre a casa e a rua, o vetor que une ofício e ócio.

Na cidade que espalha, esparrama e afasta casas e pessoas, a Rodoviária é o ponto onde elas se aproximam. Ciganos; jovens de piercing, tatuagem e smartphones; velhinhos carregando suas pastas analógicas; mães solteiras; famílias inteiras; nóias; trabalhadores de terno e gravata. Todos disputam um espaço sobre aquelas plataformas, tentando ir e vir, cruzar os caminhos, tomar a cidade.

Sonho e realidade se encontram também ali. Idealizada para ser o “remanso onde se concentrariam cinema, teatros e restaurantes”, numa mistura de Piccaddilly Circus, Times Square e Champs-Elysées, a Rodoviária virou a filha rebelde, que abandona o sonho dos pais e vai construir sua própria história, dona dos seus erros e acertos. Transformou os planejados restaurantes em lanchonetes que anunciam combos de pastel e caldo de cana por R$ 3. O centro sofisticado de compras virou um colorido comércio popular, com centenas de pequenas lojas de sapatos, cosméticos, capas de celulares, bijuterias e toda a sorte de serviços. Os candangos tomaram a Rodoviária para si. Transformaram a atmosfera requintada e cosmopolita, concebida por Lúcio Costa, num espaço genuinamente brasileiro, possível, com muitos dos nossos problemas e limitações.

Cerca de 25 anos depois da inauguração de Brasília, numa das entrevistas que deu sobre a sua cidade inventada, Lúcio Costa reconheceu que ele estava errado sobre aquela plataforma central, que “o sonho foi menor que a realidade”. E a Rodoviária virou a realidade mais bonita e possível de Brasília.

A Rodoviária é aquele lugar onde a flecha da nossa alma barroca brasileira alcança Brasília, atingindo em cheio o coração da utopia modernista. Engana-se quem pensa que a ferida é mortal.





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2 comentários

  1. Janira, não sei se já comentei isso pessoalmente contigo, mas eu amo ler teus textos. Tua linguagem é tão clara e gostosa que eu penso: ah, assim eu também consigo escrever! Mas não adianta, não consigo. Não é tão simples quanto tu faz parecer ser. É dom mesmo, viu? Misturado a treino, muitas leituras, e gosto pela coisa. Parabéns pelo post! Ah, e pelas fotos que estão lindíssimas. Um dia vou pedir uma pra ti, pra fazer um quadro aqui pra casa, se tu não te importares :) Beijos

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    1. Heide, que delícia ler seu comentário!!! E olha, eu ia ficar MUITO feliz em ver uma foto minha na sua parede, você é uma grande referência de bom gosto pra mim! rs Um beijo!

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