Por que conhecer Varanasi?

terça-feira, abril 11, 2017



Existem milhares de motivos para NÃO ir a Varanasi. A cidade é feia, suja, caótica e fedorenta. É praticamente impossível se orientar nas ruelas da cidade antiga - e quando eu falo ruela, engana-se quem pensa nos becos de Salvador ou Ouro Preto. É ruela meeeesmo - a largura suficiente para passagem de duas pessoas. Mas aí passam quatro, uma vaca e um cachorro.

Construída para desorientar os invasores e dificultar a tomada da cidade, a parte antiga é um desafio ao senso de orientação dos turistas mais experientes. Os moradores já conseguem identificar o olhar perdido dos visitantes e, mesmo que você não peça ajuda, eles simplesmente sinalizam um "me siga" e te deixam no ghat (escadarias de acesso ao rio Ganges) mais próximo.

A parte antiga de Varanasi é um sistema de escoamento e drenagem e por isso é escura e úmida, cheia de passagens e águas minando de paredes e escadas. Cada canto em que se olha, é possível divisar um pequeno templo ou altar. São milhares deles, sinalizando a vocação espiritual e sagrada do lugar.
Ruelas da parte antiga de Varanas.
Os turistas são abordados o tempo todo, por pedintes, religiosos, crianças, vendedores. A cidade cheira a cocô e incenso. É preciso estar sempre atento, para não pisar nos milhares de montes de bosta de vaca das ruelas e não trombar em alguém. Não tem descanso. Varanasi é exigente e misteriosa.

Por tudo isso, eu entendo as pessoas que não querem conhecê-la. Compreendo também aqueles viajantes que encurtam sua estadia, exauridos pelos estímulos constantes e pela energia pesada da cidade da morte. Mas eu acho que os motivos para incluir essa cidade numa viagem à Índia são maiores do que as razões para não visitá-la. Varanasi é parada obrigatória para o viajante interessado na cultura indiana. Para mim, o destino mais surpreendente da minha viagem. O mais desafiador, interessante - acho que me arrisco a dizer que o preferido, apesar de tudo. Vou te dizer o porquê.





Vamos sorrir pra foto e fingir que não tá sentindo esse cheirinho de cocô com esgoto? Bora!


1. Refletir sobre a morte


Madeira usada na cremação dos corpos, no Manikarnika Ghat.

Varanasi é a cidade indiana dedicada à Shiva, o deus da destruição no panteão hindu. Por isso ela é considerada também a cidade da morte. Os hindus acreditam que morrer em Varanasi libera nossa alma do ciclo de reencarnações. Segundo o hinduísmo, nossa alma é imortal e passa por um ciclo de morte e renascimento até conseguir sua purificação e chegar na libertação final, quando consegue, enfim, se juntar ao mundo espiritual para sempre. Ao morrer em Varanasi e ter suas cinzas jogadas no Ganges, consegue-se escapar desse ciclo, já que as águas do rio são consideradas sagradas e capazes de purificar as almas e redimir os pecados. Para o hinduísmo, o Ganges é uma deusa, Ganga.

Por isso, morrer em Varanasi é o desejo de todo hindu. A energia da cidade é única. Imagina milhares de pessoas indo para uma cidade só para morrer? Doentes em estado terminal, velhinhos, gente abandonada pela família. Existem hospedarias e centros de acolhimento só para essas pessoas que vão para a cidade esperar pelo momento final em que, enfim, poderão se juntar ao divino.

Todo hindu deve ir a Varanasi pelo menos uma vez na vida. As famílias costumam guardar um pouco da água do Ganges em suas casas, como amuleto auspicioso ou para dar àqueles que estejam próximos da morte.

Assim, Varanasi é uma cidade que vive de morte. Os momentos mais impactantes da minha passagem por lá foram as visitas aos ghats que fazem a cremação dos corpos, o Manikarnika Ghat e o Harishchandra Ghat. Nos dois há cremação de corpos 24 horas por dia e é possível acompanhar, de longe, o ritual. Não é permitido fotografar ou filmar. Lembre-se que, por mais curioso ou exótico que pareça para você, aquilo ali continua sendo um velório, com gente lamentando a morte de entes queridos.

Não se pode chorar durante o enterro, que sinaliza apego ou tristeza. O ciclo de morte e reencarnação é natural para os hindus, então é preciso deixar a alma partir e continuar o seu caminho.

Estar ali e poder presenciar o ritual de cremação, tentar compreender de coração aberto a maneira como eles encaram a morte e sentir toda a energia daquela cidade é uma experiência poderosa, que nos faz repensar a nossa própria forma de pensar a morte e, portanto, a vida.

Tivemos uma grande sorte ao visitar o Harishchandra Ghat, já que o filho da família responsável pelas cremações no ghat, se aproximou de nós e nos ofereceu uma pequena visita guiada. Ficamos receosos porque muitas pessoas ofertam esse tipo de coisa e a chance de cair na mão de um charlatão que não sabe nada é grande. Mas foi ótimo. Ele conhecia profundamente o ritual, tinha ótimo inglês e era sensível e atencioso.


2. Olhar a vida acontecendo nos ghats



Nos ghats menos famosos, é possível observar a vida acontecendo

Varanasi é uma cidade enorme. com mais de três milhões de habitantes e o rio Ganges é central para sua dinâmica urbana. O dia começa ainda de madrugada nos ghats, com banho e higiene no rio para agradecer e se purificar para o novo dia que começa. Durante todo o dia, pessoas buscam o rio para lavar roupas, dar água para vacas e outros animais, para conversar e olhar a paisagem... Na beira do rio, é possível testemunhar o dia a dia daquela cidade e a centralidade daquelas águas na vida de seus habitantes.

É um exercício antropológico maravilhoso apenas sentar nas escadarias de acesso ao Ganges e observar sua dinâmica. Os ghats mais famosos são o Dashashwamedth e o Manikarnika, por sua importância religiosa e cultural, e pela facilidade do acesso, justo no centro da cidade. Além desses, é legal sair caminhando pelas margens do rio, de um ghat a outro. Os menos famosos, além de mais tranquilos, tem uma dinâmica mais "local", com menos turistas e toda a economia que se cria em torno deles.


3. Testemunhar o poder da fé






Varanasi é lugar de fé e misticismo. Observar a crença inabalável daquelas pessoas mexe com o coração do ateu mais convicto, rs.

O Ganges é um rio MUITO poluído. Além de toda sujeira e contaminação comuns a grandes cidades indianas sem saneamento básico e esgotamento sanitário, o Ganges recebe diariamente centenas de cinzas e restos de corpos humanos. Nos casos de mulheres grávidas e crianças, os corpos são jogados diretamente no rio sem incineração, já que são considerados puros. Muita gente pobre, sem condição de pagar pelas cremações, também costuma jogar os corpos dos mortos diretamente nas águas do Ganges. Apesar dos esforços recentes pela limpeza, ainda hoje a concentração de coliformes fecais na água é 120 VEZES MAIOR do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde. Apesar disso, os hindus não só tomam banho no rio, como também lavam suas roupas, escovam dentes e BEBEM essa água. Só uma crença inabalável de que aquelas águas são sagradas e, portanto, puras, pode explicar esse comportamento. Isso deu um nó na minha cabeça cartesiana de pouca fé e de brasileira que tem na limpeza um imperativo moral e ético, rs.

Na cidade, é possível encontrar muitos homens que renunciaram todas as posses materiais e vivem basicamente do que é dado a eles. Não tem dinheiro, casa, comida, nada. Nenhuma garantia. Vivem apenas de sua fé e da caridade alheia. Que desafio tentar compreender isso! Para mim, impossível, e, ao mesmo tempo, tão sedutor...


4. Conhecer uma das cidades mais antigas do mundo




Varanasi é considerada uma das cidades continuamente habitadas mais antigas DO MUNDO. Há mais de 3.000 anos (hindus dizem que são 5.000, mas há controvérsias, rs) as pessoas vivem naquele lugar, sem interrupções. Poder testemunhar isso é incrível!


5. Ver o nascer do sol no Ganges



O melhor horário para visitar o Ganges é de madrugada, para ver o sol nascer nas águas do rio. As más línguas dirão que é a poluição, mas a alvorada é diferente por lá. Filtrado por uma fina camada acinzentada, o sol aparece como uma bola vermelha (mesmo!), colorindo o céu de tons de lilás, rosa e laranja, à medida que vai subindo. Esse é o melhor horário para o passeio de barco no Ganghes, que é oferecido em quase todos os ghats. Além da vista privilegiada do nascer do sol, é possível olhar a cidade sob a luz dourada do horário, suavizando a visão ocre das escadarias e construções da beira do rio. É como se a cidade estivesse sob um filtro sépia, um filme antigo da vida real.


Prepare seu coração e nariz, mas não deixe de conhecer Varanasi.

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